terça-feira, junho 06, 2006


"Adeus, até ao meu regresso"

Fui ontem ao Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, no Largo do Paço, no âmbito da exposição "Testemunhos de Guerra", assistir a um recital do Sindicato de Poesia, do qual faz parte um grande amigo, o Daniel, mais conhecido nos dias que correm por "Cristo", e para o qual mando um grande abraço e felicito por procurar manter viva a chama da poesia lusa. O recital intitulava-se "Adeus, até ao meu regresso" e era composto por dezenas de poemas, todos eles mais ou menos relacionados com a guerra colonial.

Retenho um, não particularmente incisivo em relação a questões da própria guerra, mas que, talvez pela forma exímia como foi dito, marcou-me de facto. Aqui fica:

"Poema Pouco Original do Medo"

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill


3 comentários:

Anónimo disse...

Grande, este poema é, incisavamente: a Guerra"!
Muito bom...
Esse Cristo é um Senhor.

Anónimo disse...

sim, concordo. queria dizer explicitamente. é claro que a guerra está implícita no poema. acho que na altura a guerra estava implícita em tudo...

Abraço!

Anónimo disse...

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
Demais!!!!
Não me canso de lêr um belo poema...